Além da Consciência: O Verdadeiro Poder do Inconsciente

Por séculos, a visão dos transtornos neuropsiquiátricos, em seu momento classificado como loucura, foi distorcida pela ótica cartesiana, que impôs uma separação drástica entre a razão e a desrazão. 

Para Descartes, o pensamento era um domínio puro e intocável, e a loucura não o atingia, apenas o homem. Essa crença de que “o homem pode ficar louco, mas o pensamento não” justificou tratamentos, como choques, mutilações, encarceramento, imobilizações e métodos mais alinhados a tortura do que à cura. Uma vez que não existia uma causa orgânica para justificar o comportamento, e a dimensão psíquica era desconhecida, muitas vezes os pacientes eram deixados em seus próprios sofrimentos.

Foi nesse cenário que Sigmund Freud começou a questionar a ineficácia desses tratamentos. Durante os estudos com Jean-Martin Charcot, Freud começou a perceber que os sintomas tinham uma origem psíquica, ligada a eventos e memórias reprimidas. E para ele, essa era a principal lacuna: o transtorno  neuropsiquiátrico não era a ausência total de pensamento, mas a manifestação de um pensamento inconsciente que operava com sua própria lógica.

Para ele, o inconsciente não é apenas o que está “fora de alcance”, mas sim o que foi ativamente reprimido. Ele criou uma distinção fundamental entre o que chamou de pré-consciente (o latente, que pode ser acessado com esforço) e o inconsciente propriamente dito (o reprimido, que permanece oculto e inacessível). Como ele mesmo disse, no inconsciente, “nada termina, nada passa, nada é esquecido”.

A introdução do conceito de inconsciente por Freud foi radical e encontrou forte resistência. A ideia de que não somos senhores de nossa própria casa, ou seja, de que uma parte de nossa mente age fora de nosso controle consciente, desafiou dogmas religiosos, filosóficos, científicos e reescreveu a história da psique humana.

Entendendo conceitos do ponto de vista Neurocientífico

A consciência pode ser entendida como o estado de vigília e de conhecimento de ideias e experiências subjetivas que podem ser acessadas e manipuladas de forma intencional. Esse processo não se limita ao que está presente, mas também engloba as memórias que podem ser voluntariamente recordadas e reconhecidas. A sua função é permitir que o indivíduo utilize as experiências do passado de forma deliberada para planejar e agir no presente1.

Nossa capacidade de atenção plena (ou foco consciente) é um recurso extremamente limitado. Não podemos processar tudo ao nosso redor com a mesma intensidade.  É por isso que é difícil conversar no telefone e ao mesmo tempo ler um livro. Ambas as tarefas exigem atenção consciente e competem pelos mesmos recursos cerebrais. Ao mesmo tempo, a consciência é frágil, pois pode ser prejudicada por fatores como cansaço, fome, ansiedade ou depressão. Além disso, a atenção se manifesta de duas formas: nos processos automáticos, que ocorrem sem esforço consciente, e nos voluntários, que exigem foco e controle consciente para realizar uma tarefa2.

O processo atencional e consciente, apesar de parecer o centro de nossa experiência, na verdade serve como um portal que nos leva ao comportamento inconsciente. A mente está constantemente buscando maneiras de economizar recursos, transferindo o que é repetitivo e previsível para o “piloto automático”3.

Nesse sentido, ser inconsciente é o nosso estado padrão e mais comum. Ele é o verdadeiro motor de grande parte do nosso comportamento. O que fazemos de forma consciente hoje, seja a prática de uma habilidade, a repetição de uma rotina ou a vivência de uma experiência emocional intensa, molda a nossa memória não declarativa. Essa memória se torna a base para os processos automáticos que, no futuro, guiarão nossas ações e decisões de forma rápida e eficiente, sem que precisemos pensar.

Assim, o esforço consciente de hoje é o alicerce para a fluidez e a automaticidade do comportamento inconsciente de amanhã, permitindo que a mente continue a aprender e a se adaptar ao mundo sem ser sobrecarregada4.

Limitações Físicas da Cognição

O cérebro tem processamento consciente e inconsciente para superar limites físicos. Pode ser explicada por uma análise de custo-benefício proposta por Steven Pinker, psicólogo e cientista cognitivo. Saiba mais clicando aqui.

Isso acontece por três razões:

• Espaço: O tamanho do cérebro é limitado. Por isso, ele automatiza funções básicas, liberando espaço para o pensamento complexo.

• Tempo: O pensamento consciente é lento. A automação permite que o cérebro reaja rápido em vez de pensar em tudo.

• Energia: Pensar conscientemente gasta muita energia. A automação economiza recursos, tornando o cérebro mais eficiente.

Quando nos concentramos intensamente em uma tarefa mentalmente exigente, o sistema nervoso simpático é ativado, e a atividade parassimpática é, consequentemente, inibida. Essa inibição é o que direciona a energia e os recursos do corpo para o cérebro, a fim de sustentar o esforço cognitivo. Isso explica a sensação de cansaço após um dia de trabalho mental intenso e a dificuldade em realizar funções corporais como digestão e excitação sexual5,6.

Portanto, o raciocínio deliberado não é apenas energeticamente custoso, mas também interfere em comportamentos biológicos importantes.

Dessa forma, o cérebro adota uma postura conservadora ao priorizar o processamento inconsciente, mantendo um estado de facilidade cognitiva por meio de condicionamento, memórias implícitas, associações, antecipação, automatização e atalhos mentais que otimizam a capacidade mental para gerenciar diversas tarefas em paralelo. 

Conclusão

Essa divisão entre consciente e inconsciente não é uma falha, mas uma solução evolutiva eficiente diante das limitações físicas, temporais e energéticas da cognição humana. O que experimentamos como esforço e deliberação hoje é, em essência, o processo de construção. 

Cada escolha consciente, cada hábito repetido, serve como um tijolo na fundação do nosso comportamento futuro. A maior parte de nossa vida, guiada por esse sistema automático e inconsciente, é o reflexo direto das experiências e decisões que, conscientemente, escolhemos priorizar ou vetar. 

O verdadeiro poder da consciência reside não em controlar cada ação, mas em construir o alicerce sólido sobre o qual nosso “eu” automático acessará um acervo de memórias que guiará o comportamento inconsciente de tal maneira que trará mais bem estar.

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Felipe é fundador da Umajuda e especialista nas áreas de Neurociência e Filosofia. Apoiador de movimentos filantrópicos, empreendedor e executivo a mais de duas décadas, acumulou experiências internacionais que lhe permitiram conhecer diversas realidades, culturas e aprofundar seu conhecimento sobre o comportamento humano. Atualmente, também é doutorando pela USP na área de Neurociência.

1 – DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

2 – KAPLAN, H. I., & SADOCK, B. J. (2015). Compêndio de Psiquiatria: Ciência do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 10ª ed. Porto Alegre: Artmed.

3 – SHIFFRIN, R. M., & SHNEIDER , W. (1977). Controlled and automatic human information processing: II. Perceptual learning, automatic attending, and a general theory. Psychological Review, 84(2), 127–190.

4 – ANDERSON, J. R. (1982). Acquisition of cognitive skill. Psychological Review, 89(4), 369–406.

5 – AL-SHARGIE, Firas et al. Mental workload assessment using wearable EEG and HRV measures. Journal of Clinical Monitoring and Computing, [S. l.], v. 31, n. 4, p. 777–787, 2016.

6 – VRIJKOTTE, S. et al. The role of work-related stress on gastrointestinal complaints. Journal of Occupational Health Psychology, [S. l.], v. 14, n. 3, p. 273–282, 2009.

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