Vivemos em uma era que nos exige estar sempre bem, sempre produtivos, sempre certos de quem somos e do que queremos. A dor, a dúvida e a diferença tornaram-se incômodos a serem eliminados — e não experiências legítimas da existência. Sob os imperativos de desempenho e a promessa de felicidade instantânea, o sujeito contemporâneo se vê cada vez mais isolado, solitário e desamparado.
Mas o que é esse desamparo que tanto tentamos evitar?
Desde o nascimento, o ser humano é lançado à vida em absoluta dependência do outro. É nesse vínculo inaugural — frágil, assimétrico, mas fundante — que surgem o desejo, a linguagem e a subjetividade. O desamparo não é uma falha a ser corrigida, mas a condição original da existência. Somos, por estrutura, seres faltantes. E é justamente essa falta que nos move.
Lacan nos ensina que o desejo humano nasce de uma perda irrecuperável. Quando o ser humano entra na linguagem — ou seja, quando começa a se comunicar, a se entender como parte de um mundo simbólico — ele perde uma sensação de completude que existia nos primeiros momentos da vida. A partir disso, surge uma busca constante por algo que parece estar sempre faltando1.
Esse “algo” é o que a psicanálise chama de “objeto a”: uma representação daquilo que desejamos, mas que nunca conseguimos alcançar totalmente. É essa falta, longe de ser um defeito, que nos move, que nos faz desejar, criar, buscar sentido. No entanto, a lógica do consumo tenta encobrir essa verdade estrutural com promessas de completude. Somos bombardeados por objetos, ideais e performances que se vendem como soluções definitivas para o vazio que nos habita.
Essa tentativa de tamponar a falta gera um mal-estar profundo. A pluralidade de discursos, a fluidez dos valores e a fragmentação das verdades não nos libertam — nos desorientam. Sem referências sólidas, o sujeito se vê diante de um mar de escolhas e nenhuma bússola. A angústia, que poderia ser um ponto de escuta e transformação, é tratada como ruído, como sintoma a ser silenciado.
Mais grave ainda: experiências humanas fundamentais — como o luto, a tristeza, a frustração, o sofrimento amoroso ou o mal-estar diante da injustiça — são rapidamente patologizadas. O que antes era vivido como parte do drama humano, hoje é medicalizado, diagnosticado, neutralizado. A dor precisa ser eliminada, não compreendida.
A verdadeira força não está em buscar uma versão perfeita de si mesmo, mas em aceitar o desconforto como parte do caminho. Não se trata de eliminar a dor ou fugir do vazio — mas de encará-los de frente, com maturidade e coragem.
É entender que todos nós somos atravessados por falhas, contradições e desejos que nem sempre se realizam. E mesmo assim, escolher avançar. Porque é justamente nessa imperfeição que mora o nosso potencial de crescimento, transformação e autenticidade2.
Esse texto nos deixa 6 importantes lições:
1. Aceitar que a falta faz parte de quem somos
Nos convida a olhar para o que falta — aquilo que não temos, que perdemos ou que nunca conseguimos nomear. Parece pesado? Talvez. Mas é esse espaço vazio que nos move, nos faz desejar, criar e buscar novos sentidos.
Você não precisa estar completo para seguir em frente. Estar incompleto é o que nos torna humanos.
2. Você não precisa fingir que está tudo bem o tempo todo
Sofrer pelo fim de um relacionamento, sentir tristeza após ser demitido ou viver o luto por alguém querido não são doenças. São experiências legítimas. Mas a cultura atual transforma isso em algo que “precisa passar rápido” — ou pior, em transtornos a serem medicados.
Nem todo sofrimento é sinal de patologia. Às vezes é só o coração tentando dizer algo importante.
3. O problema não é ter conflitos internos — é ignorá-los
Você não precisa se encaixar num padrão de normalidade. Olhar de frente para seus desejos, suas perdas e suas contradições, mesmo que doa. Fugir da dor pode ser mais angustiante do que senti-la.
Negar o conflito é negar a si mesmo. Você não precisa estar “resolvido”, mas pode estar disposto a se escutar.
4. O mito da felicidade eterna: um peso disfarçado de meta
Redes sociais, publicidade e discursos de autoajuda muitas vezes oferecem fórmulas mágicas: “basta pensar positivo”, “acredite e tudo dará certo”. Entretanto, a vida real tem furos, silêncios e momentos em que a resposta não virá de fora.
Prometer plenitude é negar que desejar é sempre buscar — nunca possuir completamente.
5. Sustentar o vazio é um ato de coragem
Parece contraditório, mas escutar a própria dor, sustentar o incômodo e não correr atrás de uma solução imediata pode ser libertador. Isso não significa resignação, mas sim acolhimento de si. E a partir daí, algo novo pode surgir.
Em vez de calar sua angústia, pergunte a ela o que está tentando te contar.
6. Você não está “quebrado” — está vivo
Não devemos adaptar nossas emoções a um mundo que exclui os frágeis, os que sofrem, os que duvidam. Pelo contrário: reconhecer essas partes também é um gesto de resistência. Uma afirmação de humanidade.
Concluindo, talvez a grande virada não seja buscar a felicidade perfeita, mas aprender a conviver com a imperfeição da vida — e com a nossa. Escutar o que doi, sem pressa de curar, pode ser o começo de algo mais verdadeiro. E isso, por si só, já é um caminho de transformação.
Felipe é fundador da Umajuda e especialista nas áreas de Neurociência e Filosofia. Apoiador de movimentos filantrópicos, empreendedor e executivo a mais de duas décadas, acumulou experiências internacionais que lhe permitiram conhecer diversas realidades, culturas e aprofundar seu conhecimento sobre o comportamento humano. Atualmente, também é doutorando pela USP na área de Neurociência.
1 – LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. 1ª edição. Editora Zahar, 1988.
2 – KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. 1ª edição. Companhia das Letras, 2002
